Tamar-Matar

Águas passadas

Percival Puggina (http://www.puggina.org)

Quero confessar minha admiração pelo pentecostal fervor com que os defensores do "sim" sustentaram sua posição no recente referendo. Se eu não sou cabeça muito dura acabaria convencido de que é preciso renunciar ao direito de defesa da vida para conservar a vida. Teria admitido que o gaudério do interiorzão, longe do delegado, do juiz e do policial, deve confiar o zelo de sua propriedade e da sua família aos latidos de um par de guaipecas. Teria concordado com que o morador da cidade, se acordar com um assaltante arrombando a porta, deve entregar-se à proteção de São Dimas, o bom ladrão, para que este amoleça o coração do colega. Sempre achei lindas aquelas revoadas de pombinhas brancas e os emocionados discursos em favor da vida. Eis aí a minha turma, eu pensava, como defensor da vida e dos direitos humanos, embora convencido da obtusidade de seus argumentos nesse específico caso.

Mas se essas são águas passadas, o fato é que elas ainda podem mover moinhos. Rio abaixo, a luta em favor da vida continua. E eu, lendo-os e ouvindo-os, adquiri a convicção de que andaremos juntos em outras correntezas. Tenho certeza de que os defensores do "sim" no recente referendo são, também, defensores do meio ambiente e dos animais. Sei que a preocupação com estes últimos vai ao detalhe: protegem seus hábitats, cuidam de um ovo de tartaruga como se fosse um bebê, conhecem o período de reprodução dos bichos, zelam por esses ciclos e pelos locais de desova. Chamam santuários esses ambientes. Associam-se e contribuem para ONGs que defendem baleias, pingüins, jacarés e sagüis. E eu acho tudo isso muito bonito.

Tenho sólidas razões, portanto, para esperar que o mesmo entusiasmo com que defenderam a proibição do comércio de armas, que a mesma indignação com que investem contra a crueldade aos animais e protegem seus acasalamentos, ninhos e hábitats, os motivará agora a se unirem a nós na luta contra o aborto. Ou não? Será necessário lembrá-los de que o feto é o indefeso filhote do bicho homem? Que o embrião humano, cuja destruição e manipulação são ardorosamente postuladas, constitui, na verdade, um ovo fecundado como, por exemplo, o reverenciado ovo do jacaré de papo amarelo?

Pois é. Espero não encontrar ninguém da turma do "sim" apoiando o projeto de liberação aborto em tramitação no Congresso (PL 1135/91). Por favor! Caso contrário, apelaria para que encarassem o embrião e o feto com a mesma benevolência que dispensam à fauna e à flora. E que pleiteassem para as práticas de aborto e de destruição de embriões o mesmo rigor com que a lei trata os crimes ambientais e os maus tratos aos animais. Poderão, agora, as águas passadas do referendo acionar o moinho da defesa da vida humana na mais desprotegida de suas formas?